sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Portal do Juízo Final - o julgamento

As igrejas românicas, cujo estilo é anterior ao gótico, são de um período em que o poder da Igreja repousava nas mãos dos monges e abades, iniciadores dos fieis no mistério da fé. Esse domínio se expressa inclusive na iconografia, o que faz com que as figuras centrais dos portais das igrejas desse estilo representem o Cristo em ascensão. Já no período em que o gótico predomina, a autoridade legal do bispo, ligado às cidades em crescimento, é expressa pela imagem do julgamento. Dessa forma, o portal principal da Notre-Dame, construído entre 1220 e 1230, apresenta a imagem do Juízo Final segundo o Evangelho de São Mateus.

Na arquitrave inferior do lintel está representada a ressurreição dos mortos que se apresentam para o julgamento.

Na arquitrave superior o Arcanjo Miguel, com uma balança, pesa as almas e, de acordo com a forma como viveram na terra e a fé e o amor que tiveram por Cristo, as envia para a salvação ou para a danação. Ao seu lado encontram-se um diabo carcamano*, um diabinho que emerge do solo e puxa por uma das pernas a alma que está num dos pratos da balança e dois diabos conduzindo as almas danadas para o inferno. Um deles vai à frente do grupo puxando a corrente que envolve essas almas e o outro sorri enquanto as empurra por trás. Alguns desses condenados apresentam-se com coroas ou acessórios que os identificam como membros da Igreja e todos eles transmitem uma ideia de tristeza e sofrimento.

Do outro lado estão as almas salvas, algumas delas erguendo o rosto na direção de Cristo e todas portando coroas, o que pode ser interpretado como uma alusão à santidade da monarquia francesa.

O tímpano apresenta Jesus como o juiz supremo, sentado em seu trono e exibindo as chagas nas palmas de suas mãos.

Em cada um de seus lados posta-se um anjo conduzindo os instrumentos de seu sacrifício: o que está à sua direita traz a lança e os cravos com os quais foi preso na cruz, que é carregada agora pelo anjo da esquerda. Maria e João Batista, que estiveram com Ele no momento de sua paixão, ainda o acompanham, ambos ajoelhados atrás dos anjos.

Coroando cena, as arquivoltas apresentam a corte celestial: anjos, patriarcas, profetas, doutores da Igreja, mártires e virgens. Porém, se em sua parte mais alta a arquivolta é semelhante a dos outros dois portais - em que pese a diferença dos anjos debruçados sobre o Cristo como espectadores no camarote de um teatro - no trecho mais próximo ao lintel há um sem número de detalhes interessantes.


Do lado esquerdo, onde estão as almas salvas, as figuras apresentam-se serenas e contentes, e arrematando o acabamento externo das arquivoltas, há um homem entre sentado e agachado, voltado para o exterior da igreja.



Do lado direito, onde estão as almas condenadas, as imagens representam os diabos impondo dor e sofrimento, e no acabamento desse lado está um macaco, indicando a porção bestial presente no ser humano.









Essas figuras são tão grotescas e ao mesmo tempo interessantes, que ficamos um tempão observando e tentando entender o que representavam. Algumas eram relativamente claras, como a dos condenados sendo lançados num caldeirão...












... as de diabos torturando as almas danadas...




... ou outra figura demoníaca - só que agora com seios, já que a responsável pela queda do homem foi uma mulher - causando sofrimento e dor a uma figura com a mitra de um bispo e outra coroada.








Porém, havia duas imagens que não conseguimos decifrar, de figuras humanas sobre cavalos. Numa delas há uma mulher vendada conduzindo o cavalo e levando um homem na garupa, mas ele é mostrado caindo da montaria ao mesmo tempo em que as vísceras ou fezes da cavaleira são lançadas sobre seu corpo...




A outra representava um homem nu, montado e acertando com um machado a cabeça de sua montaria.










* Parece que a origem do termo "carcamano", que designava os imigrantes italianos que haviam saído das fazendas de café e se estabelecido em São Paulo no início do século XX, está ligada à pesagem de produtos para serem vendidos. Quando o filho do italiano, dono do armazém, ia pesar o produto solicitado pelo cliente, o pai orientava em sua própria língua: "carca a mano", ou seja, era para o rapaz colocar a mão junto com o produto para que a balança acusasse um peso maior e o freguês pagasse por uma quantidade além da que efetivamente iria levar. Como o nosso diabo está fazendo a mesma coisa, com um jeito de quem não quer nada pra não chamar a atenção do arcanjo Miguel, o nome caiu bem.

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