Na "varandinha" da Sainte-Chapelle

Como já havia dito uma professora com quem fiz um curso sobre catedrais góticas, a maior parte dos detalhes a serem apreciados nelas fica do lado de fora, apesar da maioria dos turistas se acotovelar para entrar, olhando apenas de passagem para as esculturas e relevos externos. Com a Sainte-Chapelle não é diferente: a capela superior tem um espaço aberto decorado com uma série de detalhes.

O lintel da capela superior refere-se ao Juízo Final e nas arquivoltas, semelhante aos portais da Notre-Dame, estão anjos e outras figuras sagradas. 

O tímpano apresenta a mesma composição que vimos no portal do Juízo Final da Notre-Dame: Cristo na posição central, exibindo as chagas, ladeado por dois anjos que trazem os instrumentos de seu martírio - os cravos, a lança e a cruz. Atrás de cada anjo há um dos personagens que acompanhou Jesus na última noite, Maria e João Batista. Porém, ao contrário do que ocorre na Notre-Dame, o cuidado aqui é bem menor e é possível visualizar a deterioração do relevo, todo sujo de cocô de pombas.

Na parte inferior do lintel pode-se ver o julgamento, feito por meio da balança que o anjo utiliza para pesar as almas, sendo que aquelas que serão salvas estão do lado direito do anjo e as condenadas, de seu lado esquerdo, o mesmo em que está um diabinho puxando o prato da balança para baixo com uma espécie de bengala.

Nas arquivoltas do lado para onde vão as almas salvas há imagens de anjos com crianças no colo e uma figura masculina, sentada, com três crianças de mãos postas em seu colo.



No lado para onde vão os condenados, as imagens mostram diabos se divertindo ao torturar as almas danadas.

Aliás, considerando-se a semelhança dos relevos e a data da construção de cada uma das igrejas - a Sainte-Chapelle e a Notre Dame -, acho que dá pra imaginar que a primeira foi uma espécie de "ensaio geral" da segunda, que levou 200 anos pra ficar pronta: os artistas tiveram tempo suficiente pra executar todas as fantasias arquitetônicas e escultóricas que lhes vinham à cabeça. Já no caso da Capela, a coisa foi feita à toque de caixa pra que a coroa de espinhos de Cristo pudesse ficar num local digno dela.

A parte mais interessante, porém, desses relevos externos, é um conjunto de imagens que ficam nas laterais da porta que sai pra tal "varandinha" a que me referi no título desse post.

Elas contam a história da criação do mundo, da queda, da arca de Noé e outras mais. O duro, às vezes, é entender o que cada uma delas está mostrando.

As duas primeiras imagens da esquerda, embaixo, mostram o início do Gênesis, sendo a primeira relativa às frases iniciais da bíblia: No princípio Deus criou os ceus e a terra. A terra, porém, era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas. Essa é a única imagem em que Deus é mostrado em majestade: visto de frente e abençoando o observador com a mão direita. A segunda imagem mostra de forma alegórica a separação entre a luz e as trevas, sendo criados o dia - representado por uma figura humana que segura uma espécie de tocha - e a noite.

Na sequência aparece a imagem de Deus separando as águas de cima - o "de cima", firmamento, sendo representado por um monte de anjinhos - e as águas de baixo - os mares, seguida pela criação da terra com a relva e as árvores.

       

Próximo passo, criação do sol, da  lua e das estrelas.

Continuando a narrativa, Deus cria as aves e os peixes e animais marinhos, no quinto dia, e os animais da terra no sexto dia.

Ainda no sexto dia Deus cria o Jardim do Éden - e na imagem é possível identificar que atrás da imagem divina está um carvalho, símbolo da realeza e do poder, pois originalmente era a árvore de Júpiter (o que mostra que o cristianismo bebeu de várias fontes). À Sua frente está a árvore da sabedoria, aquela que era proibida ao homem. E o homem é criado na imagem seguinte, sob os olhares atentos dos animais, do sol e da lua.

Encerrando a sequência de imagens do lado esquerdo da porta - sim, porque há mais no centro e do lado direito - aparece Deus apresentando ao homem o Jardim do Éden e a árvore proibida.